quarta-feira, maio 28, 2008

Margem

Gostava de ler livros antigos.
Não apenas por serem mais baratos, podendo ser comprados em sebos, mas em especial pela sensação de conforto q lhe vinha sempre q podia conhecer algo q já era conhecido. Pela surpresa de abrir numa página uma frase sublinhada a lápis ou a tinta, uma marcação discreta, um desenho, um rabisco...
Poderia dizer mais, que não sentia o mesmo prazer nas páginas virgens. Talvez por isso nunca lesse sem caneta, sem poder arrancar este estigma das palavras q ainda não foram lidas. Desta forma, relia-se, e acalmava sua necessidade de experimentar o q existe, o q é real ou q, pelo menos, já foi possível.
Certa vez, lera um livro todo grifado, cheio de adendos e pequenos comentários, círculos, flechas, subscritos – aliás, isso é muito comum em bibliotecas públicas e de faculdades, o q é incomum é o tempo para estas leituras extracurriculares – então experimentou um prazer até então inexplorado... e foi daí q nasceu sua paixão por este aspecto dos livros usados. Tanto q esquecera o autor, o verdadeiro, o q escrevera o livro, do qual também já não recorda o titulo. Mas lembra perfeitamente da grafia reta, com letras finas, harmoniosamente articuladas e feitas à tinta.
Esses rabiscos anônimos encantara-na como quando pouco importa que os defeitos se agravem ou q as qualidades se ressaltem, pq tudo é ingrediente indispensável da confecção daquele sorriso...
Ela gostava de ler livros velhos por tantas razões q era difícil lembrar qual q poderia ser mencionada sem muito receio se um dia lhe fosse perguntado o verdadeiro motivo.
No início emprestava os seus. Tinha a pretensão que q lessem-na junto com o livro. Mas isso não deu certo. Percebera no fim de tantas perdas q perdera-se nas entrelinhas, do mesmo modo em q perdiam e não devolviam mais seus livros. Era, dessa forma, autora ágrafa de uma linguagem desconhecida.
Depois começou ela própria a anotar, afim de não deixar impresso apenas o autor, q imaginava, incomentado, com frio e sozinho. Pensava q talvez o autor se sentiria feliz se pegasse por acaso um exemplar antigo e constatasse q, como às vezes parece qnd se escreve, não estava mais sozinho. Imaginou o leve sorriso q o autor esboçaria... e esboço, é tb como chamamos o rascunho, a idéia, o pré-livro.
Lhe excitava tanto a idéia de descobrir o q pensavam os outros no momento em q era lido o q agora só ela lia q divertia-se com isso. Como qnd teve vontade de rir ao observar numa biblioteca, uma estudante folheando A Casa dos Budas Ditosos, tentando manter o ar de sobriedade... ar q ela sabia impossível.
Esse gosto peculiar tornava-se tão ressaltado, q chegou a folhear exemplares apenas com a finalidade de encontrar anônimos grifos... E como se quisesse do mar, nada mais q a garrafa com a carta de alguém q naufragara, ela buscava endereços, telefones, uma declaração, um bilhete... essas coisas q só os q lêem, de alguma forma, gostariam de encontrar por entre as páginas, de um livro perdido.
Às vezes pulava para um grifo e esquecia a folha inteira, ou o capítulo. E no citado caso grave, já não sabia qual tinha sido o livro.
Um dia, lendo poemas, comprados de segunda mão, lágrimas escorreram pela segunda vez na mesma obra, quando, páginas adiante do primeiro “eu te amo”, com outras letras e tinta, percebeu o “eu também”, revelando q o primeiro leitor fora correspondido.
Foi neste momento q se deu conta de q o seu prazer só poderia existir de uma dor. Ou de um abandono, de uma tentativa de limpeza, de um gesto de desapego q é também desamor, descaso ou desperdício... Como quem admira o produto, mas descarta, pq já é lixo.
Nesse dia observou, sem saber se fazia o certo, envergonhada pq se intrometia... E acrescentou na contra-capa qse com quem retira:

Nunca deveriam ter se desfeito deste livro.


Snow, amarelada, riscada e cheia de digitais desconhecidas.