segunda-feira, agosto 26, 2019

Preto

Você deixou algo aqui comigo.
Sua sensualidade ficou por toda a casa.
Esse cheiro bom, essa espontaneidade, essa voz mansinha, seus olhos de criança curiosa, as suas mãos hábeis...
Eu ainda vou passar horas lembrando de cada pedaço, cada detalhe...
Seu cabelo lindo rastafári... Esse peito gostoso que acomodou tão bem a minha cabeça, esse jeito de quase morder o meu pescoço, esse abraço denso e confortável que me tira o chão... e o fôlego!
Seu jeito de dormir e abraçar com os braços e pernas...
Te dei muitos beijos enquanto você dormia, sabia?
Tomara que tenha tido bons sonhos...!
Nossa, faz tempo que não tinha uma noite tão agradável!
Você é todo colo. É todo desejo, é todo vontade...

Você deixou saudade.

Snow, num pillowtalk

terça-feira, agosto 06, 2019

Pitanga

Conheci Pitanga em 2011. Eu sei porque já era chegado o tempo em que tudo se documenta nas fotos de celulares.
Um amigo em comum nos apresentou para que eu o ajudasse com a carteira de trabalho, e era o que eu fazia na época.
Atendi Pitanga fora do horário, eram mais de 19:00h, meu chefe desceu, me olhou atravessado... e eu mal consegui olhar pros lados. Lembro de ter falado sobre a foto com piercings, que ele usava. Decidimos por deixar. Ele era estudante de humanas, certamente não seria um problema para um futuro patrão aquele detalhe. Um contato tão breve, tão profissional, tao simples... Teria ficado só nisso se o nosso amigo em comum não fosse tão intenso em tudo na sua vida.
Dias depois estávamos os três num bar, nós e mais alguns que esse nosso amigo agregava. Durou muito pouco também. Mas dessa vez eu pude olhar pra aquele que até então eu só lembrava  de ter comentado que tinha achado bonita a impressão digital... em meio aos mais de 200 documentos de minha cota diária...
Nos adicionamos nas redes sociais.
À partir daí tivemos longas conversas sobre nossos assuntos em comum: futebol, religião e política. E eventualmente sobre alguma particularidade de nossas vidas. Conversas longas e espaçadas às vezes por anos. Essa coisa que as redes sociais fazem de que compartilhar/curtir/comentar substitui um "oi, como vai? Bora ali!"
Pula pra 10 de novembro de 2017. Recebo pela internet a noticia do falecimento de um ex-estagiário... que por acaso a ultima vez que tínhamos nos visto foi numa madrugada de carnaval do mesmo ano. Sua vida fora tirada num suposto assalto que nunca será esclarecido. Gay, preto, militante, petista... Viveu como um meteoro seus 26 anos. Foi intenso, verdadeiro, humano. Como me parece ser a vida de todo mundo que vai embora assim tão rápido.
Durante o cortejo, uma mão afetuosa toca meu ombro e me chama pelo nome. Embaçados, meus olhos não reconhecem o semblante. A mão sai do ombro e alcança a minha. Não a rejeito. O chão estava difícil e eu não conseguia levantar a cabeça por alguns passos até que perguntei o nome daquele sujeito. Era Pitanga. Estávamos no funeral daquele que anos atrás nos apresentara. Andamos de mãos dadas durante todo o cortejo... Nos despedimos, trocamos whatzap, prometemos ir ao funeral de quem se fosse primeiro...
Para mim, a perda foi mais leve. Para ele, não. Moraram juntos, faziam o mesmo curso, viajavam. O amigo, que se foi, em muito o tinha ajudado a se graduar. Acompanhou doenças, o luto do pai, dividiram prantos e pratos... uma amizade memorável!
Nos dias seguintes eu tentei acompanhar Pitanga enlutado. Um pouco porque é muito comovente toda essa situação, um pouco por ter estudado um disciplina sobre esse assunto há uns anos atrás e um pouco mais, porque sem querer, naqueles minutos em que durou o tempo que passamos de mãos dadas, eu havia me apaixonado.
Novembro durou um ano em seus 20 dias restantes. Fizemos amor muitas vezes no sofá de casa em meus pensamentos indisciplinados até o dia em que resolvi quase... contar!
Ele cortou. Mas não foi suficiente. Parece que queria cortar qualquer contato e eu, claro, queria pelo menos contornar.
Um mês depois ele explodiu. Me disse um monte de coisas indelicadas, agressivas, ásperas. Talvez essa seja a única forma que algumas pessoas encontram para conscientizar seus cortejantes de que "não vai rolar".
Passei dezembro inconsolável.
Geralmente os lutos de minhas paixões que acabam antes de terem se tornado reais duram de 2 a 3 meses. Não foi diferente.
Pitanga foi excluído e bloqueado de todas as redes sociais porque era a sua vontade. Não mora nesta cidade, não anda de transporte público, nosso único amigo em comum não vive mais... Ele não irá para os contos de um livro, caso um dia eu o faça. Contei essa história aqui porque tenho sentido uma necessidade quase urgente de ser autobiográfica. E essa tem elementos demais.
Sobre ele, o registro mais impactante para mim será do filme que assisti durante os dias de romance inventado, de uma frase que eu queria ter dito, sussurrada, durante as tardes de férias em que, sem saber, ele habitava meus pensamentos, a minha cama, o meu sofá.
A frase do filme do ator homônimo, que na verdade é um nome artístico inventado na cidade de Cachoeira-BA, o pai do Rocco e da Camila, o grande Antonio:


-Pitanga é fruta de chupar!!


Snow, catártica.