sábado, março 31, 2007

Cacos

Aquele copo não quebrou sozinho. Não deslizou, não simplesmente escorregou, não foi dessa maneira.
Caiu pq ela tremia.
Na verdade ela o soltou. Qse arremessou contra o piso frio da cozinha...
Podia ter se cortado, sangrado, já nem sabe se preferia.
Só não queria mesmo aquela angústia, aquela dor sem lugar no corpo, sem caber, sem ter aonde, por onde sofrer... Se ao menos alguma parte em seu corpo estivesse ferida, machucada... Se ao menos cortasse, queimasse, adoecesse...!
Mas nada! Permanecia saudável. Há qnt tempo mesmo não pegava uma gripe... não tinha uma dorzinha de barriga sequer, uma dor de cabeça...? Nem lembrava.
E pq diabos mesmo havia tanta dor naqueles olhos cansados...? Tanto não entender naqueles pensamentos, tanto penar naquela alma exausta...?
Se ao menos isso tudo a enlouquecesse, a fizesse perder a razão... o norte...! Mas não! Permanecia lúcida. Aliás, aquele seu juízo forte mais parecia uma praga. Como invejava os tolos!
Podia ter metido a porra daquele copo na parede, ter apertado contra o peito, o pescoço, cortado os pulsos... Mas nem pra isso prestava. Escapuliu. Nem se pode dizer q foi de propósito.
Não foi nada. Ela própria há muito não estava inteira. Já não era transparente, já não tinha forma... vazio recipiente.
Nisto seu corpo e aquele copo estavam ligados. No fundo, ninguém é mesmo de ferro.
Juntou tudo, pôs num saco. Destinaria depois à coleta seletiva ou doaria pras criancinhas com câncer.
Por hora, não pôde disfarçar aquela inveja do objeto tão não-mais-copo agora q caíra, enqnt q ela em pé depois de tantas quedas, ainda corpo. Ainda q em pedaços, ainda gente, ainda viva...
Ele se fez afiado e ela opaca, sofrida.
Ele dispersou-se, quedou-se, espalhou-se... e o mais era uma fragilidade rígida.
Ele copo, ela corpo.
Ela escorreu dor por todos os lados.
Ele sólido, desprendido do formato, divido numa ânsia incontinente por multiplicar-se...
E ela ali, ao seu lado.
Líqüida.


Snow, e ainda é março.

P.S. "Caco" é como se chamam as emendas q os atores vão colocando às falas originais do roteiro.

2 comentários:

Anônimo disse...

só agora vi seu blog. e há tanto tempo vc comenta o meu. e o seu é lindo e eu penso porque nunca cliquei antes e porque eu devia perguntar quem é você, senhora floco de neve, se o que eu acho mais bonito é bem mistério grande.
enfim, pergunto.
quem sabe você, da sua janela, quer ser minha amiga. mas já não somos?
agradeço aos elogios e retribuo os seus: o blog é lindo. somos, as duas, líquidas.

Hilton disse...

a dor do corpo espalha no mundo o que está contido no "si". esse refugo de Reich com oqual concordamos nos porres e võmitos, nas noites insones em que tudo é vão nos arrasta para questões tão inuteis quanto aquele monte de capim crescendo ignorado em algum lugar remoto do universo. Estamos sós e não há mundo senão aquele que fazemos, sem decisão todavia. A fatalidade para mim é estar e ser livre quando nosso querer é uma louca vontade de vida oposta aum pergeminho mofado chamado razão.