terça-feira, novembro 11, 2008

Anestesia

O meu dentista novo tem qualidades e defeitos como todo ser humano. Os anteriores só tinham um ou outro aspecto e se em um nuances de outro, sempre discretos. Mas este de agora tem tudo muito bem ressaltado.
Primeiro ele quase não fala. E quando abre a boca não deseja ser ouvido. Isto para mim é um defeito gravíssimo! Estressa-me, me deixa nervosa. Só de pensar, meu dente já dói.
Depois, ele marca minhas consultas toda semana e às vezes até duas vezes por semana! (Antes eu só era atendida um vez no início do mês e outra no final do mês seguinte. E me diziam que era regra do plano...). Então eu vou pra tudo o que ele marca, e sorrindo.
Aí vem que ele trabalha sozinho. Não tem isso de auxiliar, assistente ou instrumentista na sala pra esterilizar, pegar a luva ou fazer amálgama. Ele mesmo faz tudo! Muito melhor. Menos gente a observar nossos ridículos.
A secretária dele é um amor. Sabe meu nome, liga pra eu não perder o dia da consulta, pra marcar a próxima e pra colocar o papo em dia. Rs. Quando eu chego ela abre um lindo sorriso e conversa sem parar. Compensa até a afonia do dentista.
Ele, por sua vez, não gosta muito de anestesiar. E ao invés de tomar uma picadinha de agulha eu tenho quase sempre que sentir o frio do motor perto de minha polpa e fazer o possível para conter o impulso de esmurrá-lo, já que meus dentes são muito sensíveis - e nisso puxaram a dona. Ele diz que não justifica tomar uma furada (usa este termo) para uma intervenção tão pequena.
Mas tenho que confessar que ele é muito rápido mesmo. Quando você pensa que mandou abrir a boca só pra olhar, ele já está com seu dente em uma das mãos e com a outra faz a sutura. Isso é bom porque as dores rápidas passam rapidamente também.
Ainda ontem eu tive uma dessas experiências depois de pedir até pelo amor de Deus pra que me anestesiasse e ele não ter acatado. Uma lágrima quase escorre enquanto eu gemia e me contorcia naquele divã maldito ouvindo o som do motorzinho congelar minha espinha e me provocar impulsos involuntários enquanto ele dizia:
- Eu não acredito nisso! Não acredito mesmo. Eu não acredito que você esteja sentindo essa dor toda. Eu tô vendo aqui! Não é profundo. Ah, eu não acredito!
Quando terminou eu parecia ter saído de uma sessão de choque elétrico. Contente, claro! Menos uma cárie em minha vida e mais próximo está o dia de comer chocolate. Mas os meus cabelos... lá em cima!
Medo. Angústia. Agonia.
Havia passado a dor fina.

Há algo nesse meu tratamento que me remete a um elemento humano dos mais primitivos. Eu realmente entendo quando o doutor diz que não acredita.
O ser humano tem mesmo essa dificuldade de acreditar no que ele não sente. E isso em todas as esferas da vida. Da mesma forma que para as coisas que sente ele, frequentemente, supervaloriza.
O doutor não acreditou na minha dor porque não a pôde ver, é verdade. Os olhos, a visão é um dos sentidos mais obedecidos. E até o coração deixa de padecer quando eles não vêem... (Sempre penso nos cegos quanto a isso.)
Eu também sou assim. Digo não sempre que não acredito. E eu só não acredito quando também não sinto.
Semana passada um rapaz me pediu em namoro. (É, ainda existe isso!). Quarenta e seis anos, divorciado, funcionário público, mora sozinho, filhos crescidos. (Essa descrição social me pareceu mais precisa que a dos meus sentidos.)
Mas era festa... Casamento de um amigo, lá depois de algumas horas de brincadeiras, alguns copos de cerveja, madrugada alta, música e duas doses de Wisky. - Eu não. Por causa do ante-inflamatório dado o novo gesso no pezinho.
Devido a insistência pela resposta precisa, disse-lhe um sonoro “não”, embora polido. E como instantaneamente ele emudeceu, estremeceu e desmanchou-se inteiro sob meus olhos eu o expliquei que era por causa das circunstâncias e não por ele que eu dava aquela resposta. Não era pessoal, apesar de parecer. Não significava que ele não podia verdadeiramente sentir algum afeto por mim ou algo mais, mas ali, sob aquela atmosfera, eu simplesmente não conseguia validar nada daquilo.
Os noivos passaram, um colega do lado brincou, o garçom encheu os copos, alguém trocou o disco... Ele parou um pouco. Lembrou-me que era tudo uma brincadeira e em seguida pediu licença para ir ao banheiro. Necessidade orgânica de desfazer-se do álcool ingerido.

Ou, quem sabe o pudor de não gemer nem lacrimejar por sentir a ponta do motor fria sobre o nervo exposto e ainda assim ouvir de mim o que por mais sincero pareceria sarcástico:
-Me desculpe, mas eu não acredito.


Snow, sobre certas dores invisíveis.

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